Direitos Vistos e ignorados ✓ ✓ (?)

A ilha, o pais e a diáspora foram surpreendidos e revoltados com os acontecimentos do passado 26 de junho. A cidade do Mindelo, mais concretamente a rua da Assembleia Municipal e arredores amanheceram lotadas de filas. E dessa vez não eram filas para comprar bilhetes para festa ou assistir o Carnaval senhores! Muitos inclusive tinham dormido ao relento, na tentativa de conseguir uma vaga, para tentar a possibilidade de conseguir um visto de saída dessa terra de tanta “sabura”.

E tal situação humilhante, iniciou no domingo anterior após o Centro Comum de Vistos (CCV) – devido as constantes e várias reclamações dos utentes sobre o péssimo serviço de agendamento, ter anunciado que o atendimento seria por ordem de chegada. E o que já estava mal ficou ainda pior. Dando lugar a criação de mercado negro paralelo, pessoas horas a fio, de pé, expostas ao sol e calor abrasador da época. Entre elas, pessoas da terceira idade, porque na corrida a “melhores oportunidades” o termo prioridade não vinga.

Como estamos numa era digital, e a informação está a um click de distância, como era de se esperar, a situação rapidamente se viralizou nas redes sociais. Ao ver-se na boca do povo cabo-verdiano (e não por bons motivos), lá teve o CCV de fazer a sua gestão de crise para tentar acalmar os ânimos. Prestando a seguinte declaração à Agência Lusa (aparentemente eram os que importavam no momento):

“É essencial que se compreenda que o CCV não pode ser responsabilizado pela forma como as pessoas reagem a presença consular e que é indispensável tranquilidade e paz para que a equipe possa fazer o trabalho em segurança e sem intimidação. A segurança e dignidade de quem está a trabalhar é igualmente importante.”

Ou seja, na primeira oportunidade de emitir alguma declaração oficial, foram logo tirando a culpa de cima, e como se não bastasse colocaram-se numa postura de vítima da situação. Insinuando de certa forma, que corriam algum perigo, sendo que os verdadeiros lesados estavam lá fora num sol de “ratxa” pedra. Muitos sem noção de que o seu direito a um serviço de qualidade- Artigo 8º da Lei nº 87/V/98 de 31 de dezembro de Proteção e Defesa dos Consumidores, salvaguardada pela Constituição da República de Cabo Verde – estava sendo violado perante a péssima qualidade do serviço de agendamento de pedidos de vistos.

Para arrematar o CCV ainda fez a seguinte declaração à Agência Lusa: “Tudo está em aberto em função dos resultados da permanência consular e das condições que esta se processa, incluindo a suspensão das mesmas.”

Até “tudo está em aberto” até que era aceitável, mas mencionar a possibilidade de suspender as permanências consulares, pode ser visto como chantagem. É como dizer entre linhas que têm a faca e o queixo não, e que podem fazer o que quiserem. Por outras palavras, podem continuar centralizados na capital, e os cabo-verdianos das outras ilhas que são os necessitados do serviço (se isso não é humilhar…) que lutem para chegar até eles.

De fato têm a faca e o queijo na mão quanto à soberania e o direito de decidir sobre quem deixam entrar no seu território. E nem é isso que está em causa. Mas a partir do momento em que se presta um serviço como o do CCV, dentro do território de Cabo Verde, o mesmo deve ser proporcionado dentro do que é a legislação do país.

Vários atores da sociedade civil, deputados, alguns membros do governo, tal como a ADECO recriminaram uma vez mais essa situação que está cada vez mais insustentável. E os consumidores cabo-verdianos têm todo o direito de pedir ao Governo, que dentro das suas possibilidades e competências interceda nesse caso. Agora dizer que o “Governo pouco ou nada poderá fazer para resolver esta situação” para não comprometer a relação com Portugal, não seria assinar atestado de descaso? Porque se o Governo de Cabo Verde não interceder pelos direitos dos utentes cabo-verdianos, quem o irá fazer?

No auge dos acontecimentos foram referidas algumas possíveis soluções para a resolução desse problema que se vem arrastando. E a mais defendida pela maioria dos partidos políticos é a instalação permanente de um posto consular do CCV em São Vicente. O que a simples vista parece uma opção funcional para servir a região norte do país.

Mas isso, vai depender muito do empenho e vontade do CCV gerido por Portugal, resolver o problema. Porque é quase inconcebível que o CCV, enquanto representante de 19 países europeus, não seja capaz de solucionar as lacunas dos seus serviços online de agendamento e melhorar a sua qualidade. E o Governo pode sim, e deve dar o seu contributo para melhorar a situação, evitando que os cabo-verdianos continuem sendo sujeitos a situações de humilhação.

Passado um mês de todos esses acontecimentos, de todo o barulho que foi feito na ocasião, voltamos a trazer esse tema. Pois não devemos deixar cair em esquecimento, permitir que se faça vista grossa à violação dos direitos do consumidor cabo-verdiano. Nossos direitos não podem mais ser vistos e ignorados.

Ilustração: Joray Brito