PÃO NOSSO DE CADA DIA, “NÔS BIFE D’CANECA”!

O mundo está numa fase complexa, incerta e muito difícil para muitas famílias, particularmente no que ao consumo diz respeito. Constatado, sobretudo, nos bens essenciais que dispararam de preços pela inflação registada no último ano, a maior parte dela importada, por sermos um país maioritariamente de importação. A guerra Rússia e Ucrânia sucedendo às mazelas da COVID-19, ainda presente, condicionam a produção, distribuição e o consumo de bens essenciais, atendendo igualmente que estes fenómenos impactam e estão ligados aos grandes produtores mundiais de bens de primeira necessidade, por exemplo, a Ucrânia no que ao trigo e fertilizantes diz respeito e a Rússia no concernente a energia, e não só, a China, com a COVID-19, com soluços na sua capacidade produtiva e uma cadeia globalizada de distribuição que está condicionada pelos fenómenos geopolíticos e geoeconómicos em andamento. Se a tudo isto não negligenciarmos os efeitos das alterações climáticas sobre vários ecossistemas produtivos, temos a tempestade perfeita contra a oferta de bens e serviços a custos suportáveis pelos consumidores, particularmente os mais desfavorecidos. Portanto, é imperativo, termos lucidez sobre a realidade global e local de modo a entender o impacto que tem nas nossas vidas e nos preços.

O preço de um bem ou serviço é geralmente definido pelo agente que o vende podendo ser adquirido, ou não, pelo consumidor se esse produto lhe interessa e se tem disponibilidade para tal. O processo de formação de preço é, basicamente, resultado de uma análise de quem vende considerando alguns fatores, como custos, margem de lucro, despesas fixas e variáveis, entre outros requisitos. Por isso, pressupõe-se legítimo que qualquer produtor de bens e serviços, em mercado livre, pratique preços justos em função dos custos associados de modo que também não sejam prejudicados e fiquem impossibilitados de continuidade da sua capacidade produtiva. Assim se pressupõe igualmente com o preço do pão. Naturalmente, o oportunismo e a especulação, também fenómenos típicos deste período inflacionista, não fazem parte da justeza que se pretende neste e noutros sectores.

O preço do pão foi liberalizado em 2006, pelo que não existe um teto máximo a ser praticado pelas panificadoras. Assim sendo, não há enquadramento jurídico para reivindicação, logo é o mercado a definir o seu preço, onde se espera sensatez, lucidez e justeza por ser um sector especial na dieta nutritiva cabo-verdiana. A estratégia competitiva, os custos e a procura ditarão o preço do pão. Se no início do mês de janeiro do corrente ano algumas fizeram fuga em frente, num primeiro momento, aumentando o preço para 28 escudos, preço que indiciou alguma especulação, hoje assistimos, em São Vicente, à cartelização do preço da carcaça de 100 g em 25 escudos, sendo a concorrência distinguida e verificada por uma ou outra singularidade de cada pão e simpatia dos consumidores com as panificadoras.

Portanto, não sendo regulável o preço pela legislação vigente, o peso consta da lei, pode e deve ser inspecionado regularmente pela IGAE, assim como práticas que atentam a livre concorrência, especialmente se têm contornos de oportunismo especulativo. Nestes tempos difíceis para o consumo, a atuação oportuna e tempestiva da IGAE é uma salvaguarda necessária para os consumidores. Se é normal aceitarmos o aumento pelo aumento dos custos dos ingredientes que o pão é confecionado, mormente farinha, já não será aceitável que não seja produzida cumprindo as regras higiénicas e de direito dos consumidores, especialmente, o peso.

Facto é que num país de rendimentos baixos, muitos deles muito abaixo do limiar mínimo de sobrevivência dos indivíduos, o pão assume especial importância na dieta alimentar muito condicionado pelas disponibilidades financeiras das famílias, sem descurar a vertente cultural que assume. O nosso tradicional “bife d’caneca”, o café da manhã com sandwiches variadas, o acompanhamento da canja ou da sopa, o jovem “hamburgov” ou outros fast food da atualidade, entre outros, fazem parte do que comemos, fazem parte do nosso convívio com o pão. Tem valor nutricional e é indissociável do nosso panorama alimentar.

Muito se pergunta porquê em São Vicente o pão tende a ser mais caro… Não conhecendo todas as possíveis razões, não descuro da importância dada ao pão pela procura devido a sua utilização nas diferentes refeições que fazemos diariamente. Contudo, devido ao encarecer substantivo, em cerca de 39%, não será de estranhar a mudança para outras alternativas ao pão na dieta alimentar. “Papa d’cabicinha, pão caseiro, arroz guisod, papa d’mitch, cuscuz, bolos, bolachas diversas” ou mesmo alimentação baseada em vegetais e outros estilos nutricionais, não tem sido descurado por todas as camadas sociais. Creio que seria de utilidade para as panificadoras estudarem as suas vendas nesta fase por forma a melhor ser percecionado o impacto do aumento do preço no consumo e nas respetivas vendas. Certo de que uma baixa no consumo, portanto de procura, poderia per si, provocar uma diminuição de preços, mesmo que ligeira, ciente de que não pode ir abaixo do preço de custo. Se calhar, mesmo a calhar, um fenómeno registado é que algumas panificadoras, além do pão de 100g por 25 escudos, começaram a produzir pão de 50g a 12 escudos onde muitos consumidores continuarão a ter acesso ao pão, mesmo que em menor quantidade, mas a um custo suportável. Uma estratégia de venda aceitável que beneficia os consumidores.

Verificado que o Governo interviu para a redução do preço da farinha em 11%, creio que, neste contexto, tendo em conta a importância do pão na alimentação de muitas famílias, não seria de todo descartável a possibilidade de continuar uma subsidiação do preço da farinha ou mesmo a fixação de um preço máximo do pão nesta fase, baseado em estudos independentes de modo a evitar oportunismo e especulação do qual não estamos livres nesta conjuntura.

O pão acompanha a história da humanidade, sendo também o alimento de referência na oração religiosa no “pão nosso de cada dia” metaforizando a nossa necessidade de alimento, está presente no slogan diário do trabalhador que vai “ganhar o seu pão de cada dia” simbolizando a sua remuneração, está presente no maior anseio e receio  das famílias “pá cá faltam um pão”, faz parte da nossa vivência e convivência e deve ser tratado como um bem de consumo de especial importância permitindo que todo e qualquer cidadão consumidor tenha acesso a ele a um preço justo para que, ao menos, ninguém amanheça ou durma com fome.

Nelson Faria – Administrador Financeiro / Membro da Direção da ADECO

Ilustração: Joray Brito