Serviços de Saúde Centrados no Paciente

A ADECO registou com apreço o anúncio de que a Sociedade Médica Cabo-verdiana realizaria, a 25 de Abril de 2023, uma palestra sobre Empatia e Ética nos cuidados de Saúde.

O Povo Cabo-verdiano é conhecido e reconhecido pela sua Morabeza, pelo seu humanismo e capacidade de assistência inter-comunitária. A partir desta premissa, para quem não está familiarizado com a prestação de serviços em Cabo Verde, assumir que a empatia e ética neste ramo de prestação de serviço, bem como de outros, seria um dado adquirido. Que aos doentes ser-lhes-iam prestados serviços de saúde de qualidade, pelo menos no que diz respeito ao cuidado com a sua dignidade, à empatia, capacidade de entender e se colocar no lugar do doente vulnerável.

No entanto, na prática, ainda é usual os pacientes se depararem com situações, muito comuns, de prestação de serviços médicos sem o devido cuidado para com a condição frágil do paciente, o respeito pela sua dignidade, a devida comunicação das informações relativas ao caso médico do paciente, a necessária obtenção de consentimento informado. Ressalve-se, por uma questão de justiça, a exceção de vários profissionais de saúde nacionais abnegados, dedicados e profundamente humanos.

Ora bem, estou em crer que a herança colonialista nos marcou com a desastrosa tatuagem do mau atendimento público. Esta tatuagem negativa penetra e prolifera por todas as instituições públicas do país, não sendo a saúde uma exceção.

A ADECO acredita ser possível uma remoção desta tatuagem. Com muito trabalho educativo, podemos escoriá-la, e germinar um novo código de conduta na prestação de serviços.

E há serviços e serviços. Naturalmente que os serviços de saúde são serviços básicos, de primeira necessidade, representação do direito constitucional à saúde, guardiões dos bens primeiramente protegidos na hierarquia de qualquer sistema jurídico, social, administrativo, estatal: o direito à vida e à integridade física.

A ADECO promoveu a Carta de Direitos e Deveres dos Doentes, adotada pelo Conselho Nacional de Saúde em dezembro de 2011. A Carta consagra o direito a não ser discriminado, o direito a ser tratado com dignidade e a receber cuidados adequados, o direito à informação e ao consentimento informado, o direito à proteção da vida privada, o direito à privacidade e à confidencialidade, o direito ao respeito pelo tempo, o direito a receber cuidados continuados, o direito a não sofrer desnecessariamente.

Direito a não ser discriminado significa que todos os cidadãos têm direito à saúde, independentemente da sua condição social e económica e orientação sexual ou das suas convicções políticas, filosóficas e religiosas, as quais devem ser respeitadas. Ao doente deve ser proporcionado o apoio espiritual requerido por ele ou por quem legitimamente o represente, de acordo com as suas convicções. O apoio de familiares e amigos deve ser facilitado e incentivado.

O direito a receber os cuidados apropriados à sua condição de saúde significa que os utentes dos serviços de saúde têm direito a cuidados de qualidade requeridos pela sua condição clínica, dentro dos limites impostos pela escassez de recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis.

O direito à dignidade e a uma atitude apropriada por parte dos prestadores de saúde. Os doentes têm direito ao respeito pela sua dignidade e a uma disposição positiva por parte dos profissionais da saúde que demonstre cortesia, paciência e empatia; além de deverem ser atendidos por profissionais claramente identificados.

O direito à privacidade significa que a prestação de cuidados de saúde efetua-se no respeito rigoroso do direito do doente à privacidade, o que significa que qualquer ato de diagnóstico ou terapêutico só pode ser efetuado na presença dos profissionais indispensáveis à sua execução, salvo se o doente consentir ou pedir a presença de outros elementos.

O direito ao sigilo e à proteção da vida privada significa que doente tem direito ao sigilo em relação a factos da sua vida privada e familiar e quaisquer outros de que o pessoal da saúde tenha conhecimento no exercício das suas funções. Todas as informações referentes ao estado de saúde do doente – situação clínica, diagnóstico, tratamento e dados de carácter pessoal, são confidenciais e não podem ser revelados sem o expresso consentimento do doente.

O direito à segunda opinião significa que o doente tem o direito de obter uma segunda opinião sobre a sua situação de saúde. Este direito, que se traduz na obtenção do parecer de outro médico, permite ao doente complementar a informação sobre o seu estado de saúde, dando-lhe a possibilidade de decidir, de forma mais esclarecida, acerca do tratamento a prosseguir.

O direito à informação sobre o estado de saúde significa que estas informações devem ser prestadas devendo ter sempre em conta a personalidade, o grau de instrução e as condições clínicas e psíquicas do doente, para que possa decidir acerca desses elementos. O doente pode desejar não ser informado do seu estado de saúde, podendo indicar, caso o entenda, quem deve receber a informação em seu lugar.

O direito de acesso ao processo clínico significa que o doente tem o direito de tomar conhecimento dos dados registados no seu processo, devendo esta informação ser fornecida de forma precisa e esclarecedora. A omissão de alguns desses dados apenas é justificável se a sua revelação for considerada prejudicial para o doente ou se contiverem informações sobre terceiras pessoas.

O direito ao consentimento significa que todo o indivíduo tem direito a participar nas decisões que digam respeito à sua saúde; esta informação é um pré-requisito para qualquer procedimento ou tratamento, incluindo a participação na investigação científica.

O direito à recusa de tratamento significa que os doentes têm o direito de recusar a prestação de cuidados que lhe são propostos, desde que isso não faça perigar a saúde de terceiros.

O direito a receber cuidados continuados significa que o doente tem o direito de obter dos diversos níveis de prestação de cuidados uma resposta pronta e eficiente, que lhe proporcione o necessário acompanhamento. Ao doente e sua família são proporcionados os conhecimentos e as informações essenciais aos cuidados que o doente deve continuar a receber no seu domicílio. Quando necessário, e se possível, deverão ser postos à sua disposição cuidados domiciliários ou comunitários.

O direito ao respeito pelo tempo significa que o doente tem o direito à marcação da sua consulta, ou tratamento, dentro de um período rápido e pré-determinado, tendo em conta as limitações do sistema.

O direito ao respeito pelo tempo significa que a marcação das consultas deve ser feita de modo escalonado, para que no dia do atendimento o doente seja atendido tanto quanto possível à hora marcada, minimizando, assim a perda do seu tempo, desgaste físico e psicológico.

O direito a não sofrer dor ou sofrimento desnecessário significa que doente tem o direito a não ser sujeito a dores ou sofrimento desnecessários, em cada fase da sua doença.

O direito à segurança e compensação significa que o doente tem o direito de acesso a serviços de saúde e tratamentos com elevados padrões de segurança, não devendo sofrer danos pelo mau funcionamento dos serviços, nem por erros ou negligência. Quando sofrer tais danos, tem o direito de receber compensação suficiente dentro de um curto e razoável período.

O direito a apresentar sugestões, queixas e reclamações significa que, através dos canais disponibilizados pelas Autoridades Sanitárias, os doentes têm direito a apresentar, individual ou coletivamente, petições, sugestões, reclamações ou queixas sobre a organização e o funcionamento dos serviços de saúde; e de ter as suas queixas atendidas prontamente e de maneira equitativa. O doente terá sempre de receber, em tempo útil, resposta ou informação acerca do seguimento dado às suas sugestões e queixas.

Naturalmente que o Doente tem deveres acoplados ao seu direito à saúde, também plasmados na Carta de Direitos e de Deveres do Doente. São eles o dever de se abster de atitudes, comportamentos e hábitos que ponham em risco a sua própria saúde ou a de terceiros; contribuir para a melhoria, ao seu alcance, das condições de saúde familiar e ambiental; o dever de colaborar com os profissionais da saúde, nomeadamente respeitando as recomendações que são feitas e fornecendo todas as informações necessárias para a obtenção de um diagnóstico correto e um tratamento adequado; o dever de respeitar os direitos dos outros utentes; respeitar o pessoal de saúde e as regras de funcionamento das instituições, honrando as marcações das consultas e informando tão cedo quanto possível, se estiver impossibilitado de comparecer; utilizar os serviços de saúde de forma apropriada e responsável, colaborar na redução de gastos desnecessários e comparticipar nos custos da saúde, de acordo com as suas possibilidades; não pedir ou pressionar os profissionais da saúde para que forneçam documentos e informações que não correspondam à realidade dos factos. Dos consumidores se espera igual cumprimento dos seus deveres de saúde, assim zelando pela sua saúde, a dos restantes pacientes recipientes dos cuidados de saúde, bem como respeitando os profissionais zeladores do direito à saúde.

Pertinente será referirmo-nos ao Estudo sobre a Cidadania na Saúde em Cabo Verde realizado pela Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania em 2022. No que diz respeito aos direitos dos Pacientes, e sem surpresas, o estudo conclui recomendando:

– Qualificação do pessoal da saúde e promoção da humanização dos cuidados, tendo em conta a heterogeneidade, assim como as necessidades ‘especiais’ de certos segmentos da população;

– Promoção da literacia em saúde, da informação, capacitação e do empoderamento em saúde (LCE) visando melhorar as condutas e o compromisso com a saúde individual e coletiva;

– Refazer um Sistema de saúde baseado em princípios de igualdade, justiça social, participação e partilha de responsabilidades juntamente com o cidadão e a sociedade;

– Pedagogia sanitária, com base num agir transparente, responsável e baseado em role model, tendo como alvo os profissionais de saúde e envolvendo outros atores sociais;

– Qualidade dos serviços de saúde e melhoramento contínuo, visando a cidadania em saúde, assim como o direito (substantivo) à saúde;

– Melhoria do tempo de dedicação aos utentes/pacientes nos hospitais, diagnóstico e aconselhamento sobre o estado de saúde mais eficazes, sobretudo para as comunidades mais vulneráveis e com dificuldades para chegar às estruturas de saúde;

– Investimento em infraestruturas de saúde, mormente os hospitais, melhorando a higiene das casas de banho (água, papel higiénico), assim como o conforto das salas de espera;

– Melhoria da acessibilidade, combate às barreiras de atitude, físicas e a nível do atendimento, assim como luta contra a discriminação, preconceitos, desrespeito, violência e abusos das populações vulneráveis;

– Sensibilização do pessoal da saúde, das comunidades, sociedade civil;

– Garantia da proteção social e medicamentos aos mais vulneráveis;

– Capacitação dos profissionais de saúde relativamente à qualidade de atendimento, melhorando a empatia para com os utentes que procuram os serviços;

– Qualificação do pessoal da saúde e promoção da humanização dos cuidados, tendo em conta a heterogeneidade assim como as necessidades ‘especiais’ de certos segmentos da população;

– Inclusão nos curricula dos cursos de profissões de saúde e educação formação teórica e treino cognitivo‑comportamental com avaliação e certificação adequadas em competências comunicacionais e relacionais no contexto do exercício dessas profissões, e conhecimentos das problemáticas ligadas à deficiência;

– Realização de formações de curta duração sobre a inteligência emocional, paciência e empatia, assim como diálogo e atenção, melhoria do diagnóstico e da confiança no pessoal da saúde;

– Maior sensibilização sobre as determinantes da saúde; palestras para pessoal da saúde e para as comunidades;

– Socialização de leis, planos, instrumentos concernentes ao direito à cidadania em saúde;

– Atendimento digno, prestação de cuidados;

– Avaliação interna de qualidade nos serviços de saúde;

– Formação contínua para melhoria no atendimento (porteiros, pessoal do front office, enfermeiros, médicos);

– Formação na área de inteligência emocional ao pessoal de saúde, assim como avaliação da saúde mental e emocional dos mesmos;

– Refazer um Sistema de saúde baseado em princípios de igual‑ dade, justiça social, participação e partilha de responsabilidades juntamente com o cidadão e a sociedade.

Finalizamos recordando que os Direitos plasmados na Carta de direitos e deveres do Doente, satélites do Direito à Saúde, são direitos fundamentais, básicos, mínimos na preservação da vida humana com dignidade. Negá-los é trair a nossa constituição. Negá-los é, também, trair a natureza extremamente humana dos Cabo-Verdianos. A ADECO continuará a lutar todos os dias para erradicar a tatuagem herdada, germinando os valores de boa prestação de serviços nos cuidados de saúde, com humanidade, dignidade, e muita empatia.   

Eva Caldeira Marques – Jurista / PCD da ADECO